O Studebaker da Praça da Bandeira

O carro que ilustra estas memórias é um Studebaker Champion 1952, pertencente ao colecionador Mario Ferretti, sendo similar ao carro utilizado pelo chofer Hildebrando, de Caçapava.
O carro que ilustra estas memórias é um Studebaker Champion 1952, pertencente ao colecionador Mario Ferretti, sendo similar ao carro utilizado pelo chofer Hildebrando, de Caçapava.

Quando o automóvel era apenas um sonho distante das famílias brasileiras, os carros de praça eram mais requisitados. Um Studebaker marcou época em Caçapava, na  década de 1950.

Por Jean Tosetto *

O saudoso Anibal Tosetto era sócio de seu irmão Arlindo, no ramo da carpintaria e marcenaria. A oficina dos irmãos era a mais conhecida de Caçapava, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, nas primeiras décadas do século 20. Diz-se até hoje, entre os mais veteranos do município, que eles cobriram a cidade, além de fornecer batentes, portas, janelas e móveis para incontáveis residências.

O sucesso do negócio, no entanto, não era acompanhado por grande remuneração. Razão pela qual nenhum deles tinha um automóvel. Num Brasil de feições ainda rurais, ambos se locomoviam de bicicleta e assim conseguiam sustentar suas famílias de numerosos filhos. Entre eles os primos Nibinha, filho de Anibal, e Romeu, filho do Arlindo.

Além do mesmo ofício, Anibal e Arlindo dividiam a paixão pelo time do Palmeiras, que até 1942 era o Palestra Itália, que na época mandava seus jogos no estádio do Pacaembu, na capital de São Paulo, distante quase 120 km de Caçapava. Hoje, por causa das pistas duplicadas e dos carros modernos, isso não parece muito longe, mas há mais de meio século, com a Rodovia Presidente Dutra inaugurada com pista simples, era uma viagem considerável.

Na cidade vizinha de Taubaté, o time local era conhecido como o “Burro da Central”. A pequena equipe havia subido para a primeira divisão do campeonato paulista de futebol em 1955 e no ano seguinte enfrentaria o Palmeiras na capital, numa noite de quinta-feira, 05 de julho. Eis uma razão adicional para, pelo menos uma vez na vida, ver das arquibancadas o time do coração jogar. 

A televisão havia chegado ao país em 1950 e ainda era um eletrodoméstico raro nas casas, por isso as pessoas do interior acompanhavam seus clubes através do rádio.

O Seu Anibal foi até a Praça da Bandeira, no centro de Caçapava, para falar com o Seu Hildebrando, motorista experiente que fazia ponto ao lado do Cine Brasil, com seu Studebaker de quatro portas. Ali eles combinaram a viagem até São Paulo, para ver o confronto entre Palmeiras e Taubaté.

O carro, de linhas aeronáuticas, tinha banco inteiriço na frente, de modo que puderam se abancar no sedan o motorista Hildebrando, Anibal e Arlindo, Nibinha e Romeu, e também o Joãozinho, funcionário da oficina. E nada de cintos de segurança. E nada de encostos para as cabeças. As pessoas iam balançando sobre as molas do estofamento, mesmo.

O Studebaker seguiu para São Paulo. Num dos postos de gasolina antes de chegar à capital, entre Mogi das Cruzes e Guarulhos, a trupe parou para abastecer o tanque e para saborear sanduíches de mortadela com guaraná caçulinha.

A garoa começou a cair. Era sinal de que o destino se aproximava. São Paulo, afinal de contas, era a “Terra da Garoa”. O Estádio do Pacaembu apresentou-se, imponente, diante de uma praça que depois seria batizada com o nome de Charles Miller, o descendente de ingleses que trouxe o futebol para o Brasil.

Tudo corria bem quando um comissário de menores reparou na baixa estatura do Nibinha, que ainda não tinha sequer nove anos de idade e seria barrado bem no portão central. Nos anos de 1950 as crianças não podiam entrar nos estádios em jogos noturnos.

Aí entrou em ação o jeito manso de conversar e argumentar do Anibal, que o fez ser vereador e interventor do então único hospital de Caçapava na década seguinte, militando pelo extinto Partido Democrata Cristão, que tinha Franco Montoro como maior expoente, num tempo onde os vereadores não eram remunerados.

No embate com o comissário de menores, Anibal descreveu o sonho do Nibinha em ver o Palmeiras jogar no estádio, mostrando todos que estavam ali, juntos, com os fundilhos ainda dormentes por causa da viagem feita no Studebaker desde Caçapava, que obviamente ficou bem mais distante do que aqueles 120 km. De coração amolecido o comissário liberou a entrada do Nibinha, quando ele pode ver a antiga concha acústica à sua esquerda, que depois seria demolida para dar lugar ao tobogã atual.

Só faltava o Palmeiras ganhar. Mas, debaixo daquela garoa, o Verdão perdeu para o Burro da Central por 1 a 0, confirmando a sina do time que coleciona grandes conquistas mescladas com derrotas surpreendentes.

O jeito foi se consolar no banco traseiro do Studebaker. O Seu Hildebrando veio guiando com todo cuidado, confiando nos faróis do valente carro, que cortavam a chuva fina nos contrafortes da Serra da Mantiqueira, que até Jacareí se confundem com os contrafortes da Serra do Mar.

Os palmeirenses chegaram são e salvos, às duas da madrugada da sexta-feira, com uma data inesquecível na cabeça e a experiência de viajar a bordo de um ícone da indústria automobilística americana. No fim daquele ano, o Brasil ganharia suas primeiras fábricas nacionais de automóveis: a Romi, de Santa Bárbara d’Oeste no interior paulista, que fabricaria o Romi-Isetta, e a Vemag de São Paulo capital, que lançaria os carros da marca alemã DKW.

Logo em seguida a Volkswagen se instalaria no Brasil para produzir o Fusca, popularizando de vez o automóvel no país e decretando o fim da era dos taxistas que trabalhavam com carros importados. Seria a aposentadoria do Studebaker do Hildebrando.

Como eu sei desta história? É simples: ela me foi contada várias vezes pelo Nibinha, que cresceu e também passou a ser conhecido como Anibal, além de se tornar meu pai.

O livro mais esperado dos últimos 40 anos pelos laferistas.
O livro mais esperado dos últimos 40 anos pelos laferistas.

* Jean Tosetto é arquiteto desde 1999 e editor do site mplafer.net desde 2001. É também autor do livro “MP Lafer: a recriação de um ícone” - lançado em 2012. Este artigo foi publicado originalmente na Revista MotorMachine número 10, em novembro de 2014.

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2 comentários:

  1. Jean, como sempre seus textos são muito agradáveis. Essa história também deve ser contada aos pequenos de nossa família para que conheçam um pouco de nosso avô.

    Cássia Tosetto.

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    1. Obrigado, Cássia. Espero em breve conhecer mais pequenos no sul de Minas. Terei prazer em contar várias histórias para eles um dia. Abraço!

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