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Percival Lafer e Jean Tosetto na Forneria San Paolo. |
O criador do MP Lafer e o autor do livro sobre o carro se encontram para um café, que ficará na memória compartilhada com os amigos deste conversível.
Ao nos despedirmos após do almoço de fim de ano do Clube do MP Lafer em Santana de Parnaíba, Percival Lafer me disse:
- Quando vier a São Paulo novamente, me avise. Vamos tomar um café.
Um convite como esse é irrecusável, mas só agora, no mês de maio, surgiu a oportunidade para colocar em ação o que algumas palavras formais sugerem. Vim para São Paulo representar a Suno Research na "Mobility & Show + Expo Braille 2025", uma feira realizada no Transamérica Expo Center. A FastBraille, uma das expositoras do evento, está gerando versões em Braille dos livros da Suno, que escrevi ou editei nos últimos anos.
Avisei o Percival que estaria na Livraria da Vila no Shopping JK por volta das duas horas da tarde, mas cheguei um pouco mais cedo. Então, para não flanar feito um fantasma pelas estantes de livros, resolvi comprar Fragmentos para a história da filosofia, de Arthur Schopenhauer. Assim, pude me ajeitar no canto de um sofá almofadado, para não incomodar os outros. Após terminar o capítulo sobre Sócrates, levantei o pescoço feito um periscópio de submarino e, por coincidência, o Percival estava entrando na loja.
Caminhamos até a Forneria San Paolo. Pedimos permissão para apenas tomar um café ali, dado que o lugar é um restaurante de culinária italiana. Pedi um cappuccino e uma garrafa de água para o garçom, que perguntou:
- Cappuccino médio ou pequeno?
- Cappuccino pequeno é sacrilégio. Quero um médio.
O Percival me acompanhou no pedido. Somos de gerações diferentes, ainda que do mesmo século. Ele nasceu em 1936 e faz parte da Geração Silenciosa, que ajudou a construir o Brasil urbano a partir dos anos de 1960, gerando empregos ao invés de seguidores em redes sociais. Nasci em 1976 e sou da Geração X, da encruzilhada da Era Analógica com a Era Digital. Não por acaso, nosso primeiro assunto foi sobre a Geração Alpha, de quem nasceu após 2010, que terá que lidar com um mundo totalmente novo, sem paradigmas e dogmas, mas sem referências sólidas para lidar com os avanços da tecnologia, especialmente da inteligência artificial.
Nós, entretanto, somos outros tipos de alfa: somos remanescentes do século XX que gostam de conversar como machos alfa, falando de carros, obviamente. Ele citou seu BMW coupé de 1970, um modelo com um desenho irrepreensível que trazia uma inovação: o comando variável de válvulas, que na época ainda não estava plenamente desenvolvido e, embora transformasse um gato manso num lince conforme se pisava no acelerador, costumava falhar com alguma frequência, no que interpretei que isso também acontece com nossas carreiras profissionais, uma vez que, em tese, sabemos que há momentos para dedicação total aos negócios, ao passo que há momentos para amansar o ritmo das coisas, mas nunca sabemos como fazer isso corretamente.
Logo falamos do nosso carro favorito, aquele que nos transformou em amigos: o MP Lafer. Confessei o receio de que, em breve, seremos proibidos de guiar carros com motores a combustão por aí, nesse mundo cada vez mais politicamente correto e ecologicamente mais restritivo. Percival respondeu que não acredita que isso vá acontecer tão cedo, mas que, em todo caso, estou liberado para espetar um motor elétrico em meu carro. Já vislumbrou a revolução? Poderíamos alojar a grande bateria no assoalho do capô dianteiro, equilibrando a distribuição de peso do conjunto e praticamente criando um novo modelo, que poderíamos batizar de E-Lafer, com a eletrônica embarcada substituindo a sigla MP, de Móveis Patenteados.
Por falar nisso, a máscara do macho alfa caiu ao tocar no tema do encerramento das atividades industriais e comerciais da Lafer, anunciada em outubro de 2022. Confessei para o Percival que chorei ao ler o comunicado, pois, após escrever o livro do MP Lafer, que também conta a história da Lafer, acreditei que a empresa duraria para sempre. Ele respondeu que seu irmão, Oscar Lafer, que era diretor comercial da companhia, foi provavelmente a pessoa que mais sentiu o fim das operações, pois a companhia fundada pelo pai, em 1927, representava muita coisa em sua vida. Alias, foi tocante ouvir ele falar de seu irmão e de seu talento nato para o violino.
Embora a Lafer tenha fechado as portas, o trabalho interno ainda não terminou para Percival, pois é necessário resolver alguns passivos, como a destinação do estoque remanescente e o atendimento pós-venda relacionado com as garantias oferecidas para os últimos clientes. Além disso, ele continua desenhando e, no momento, está mergulhado no projeto de uma nova poltrona - não sei se deveria revelar isso, mas ao entregar a informação certamente haverá gente torcendo para que o projeto se torne realidade.
Além do mais, os entusiastas dos móveis Lafer não precisam se sentir órfãos. A ETEL Design está reeditando, ainda que em escala artesanal, as peças icônicas desenvolvidas por Percival Lafer, embora, ironicamente, ele não assinasse pessoalmente suas criações, pois sempre colocou a marca da empresa acima das vaidades pessoais. Talvez, por isso, Percival não tenha sido tão festejado nos anos de 1960 e 1970 como seus colegas de geração, que eram mais personalistas. Assim, o reconhecimento da criatividade dele está vindo de forma tardia, mas solidamente.
Nesse ponto da conversa, mostrei o exemplar do livro do Schopenhauer para Percival, para resgatar uma passagem de outro livro dele, que alias lhe trouxe o reconhecimento já na terceira idade. Em Aforismos para a Sabedoria de Vida o filósofo afirma:
"Uma vantagem da fama dos feitos é que ela geralmente vem imediatamente com uma explosão poderosa, muitas vezes tão poderosa que é ouvida por toda a Europa; enquanto a fama das obras chega lenta e gradualmente, primeiro silenciosamente, depois cada vez mais alto, e muitas vezes só atinge sua força máxima depois de cem anos: mas então ela permanece, porque as obras permanecem, às vezes por milhares de anos. A outra, no entanto, após a primeira explosão, torna-se gradualmente mais fraca, conhecida por cada vez menos pessoas, até que finalmente passa a ter uma existência espectral apenas na história."
Logicamente, sintetizei essa passagem na conversa, pois longe de mim ter a capacidade de decorar o que os livros clássicos eternizam. A vantagem de quem ler este relato é essa: que pude resgatar o que Schopenhauer escreveu de fato. Ele não se dava muito bem com as mulheres e era um tanto pessimista, mas tinha observações que vale a pena absorver.
Diferentemente do pensador do século XIX, Percival Lafer se deu muito bem ao menos com sua esposa Branca. Ela sempre foi a baliza para o designer saber se estava no caminho certo em suas criações. Percival me contou que a Branca era sempre a primeira pessoa a ver seus esboços iniciais de cada projeto, os quais ela criticava sem dó e sem medo de estremecer a relação, instigando o marido a melhorar cada detalhe para entregar um trabalho que certamente seria mais um sucesso da empresa.
É muito bom ter essa liberdade de opinião dentro da própria casa. Imaginei que esta, provavelmente, foi um das razões para um casamento tão longevo. Tanto que perguntei:
- Há quantos anos você está casado?
- 63.
- E qual é o segredo para um casamento tão duradouro?
- Não tem segredo. A gente não pode correr atrás da pessoa ideal, pois ela não existe.
Essa é a grande falha que muitos cometem: se apaixonar não por uma pessoa de carne osso, mas pela projeção feita a partir dessa pessoa que vemos de vez em quando. Assim, quando o casal resolve morar junto, descobre que a outra parte não era aquilo que se imaginava e muitas vezes essa frustração resulta numa separação.
- Preciso voltar para Paulínia. Minha sobrinha está fazendo aniversário e não posso faltar na festa.
Ao que Percival tirou a carteira do bolso. Porém, o interrompi:
- Não, por favor! Deixe que eu pago o café. Quando foi a última vez que alguém te pagou um cappuccino?
A gente apertou as mãos no caixa eletrônico do estacionamento do Shopping, na borda do labirinto que se esparrama pelos pavimentos do subsolo daquele grande empreendimento. Combinamos um novo café, bastando a ocasião surgir. Em tempos virtuais é sempre bom resgatar o costume antigo de conversar pessoalmente.
Anoiteceu quando ingressei na Rodovia dos Bandeirantes. Caiu uma chuva torrencial e logo um engarrafamento se formou. Permaneci calmo ao sintonizar a Rádio Cultura de São Paulo, tentando memorizar as coisas mais importantes que falamos naquela tarde que, para mim, ficará guardada no coração (gostamos de acreditar que é preciso ser muito macho alfa para escrever algo como isso).
Você compreenderá que o que tornei público aqui foram apenas fragmentos de um diálogo, pois como adiantou Schopenhauer, tudo o que temos da história são fragmentos, não a história propriamente dita. Há miudezas que não valem o compartilhamento e há assuntos que ficam na esfera da amizade, como temas de livros que jamais serão escritos.
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Maravilhoso texto, Jean. Bom saber que o Mestre Percival, ciador dos nossos brinquedinhos, está bem de saúde e pronto para bater papos interessantes. Espero encontrá-los no nosso evento de Holambra no proximo fim de semana. Abraços.
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