Carro na estrada para Monte Alegre do Sul

Elevação posterior do portal de Monte Alegre do Sul.
Elevação posterior do portal de Monte Alegre do Sul.

Apenas um dia já pode ser suficiente para recuperar as baterias gastas nas engrenagens do cotidiano. Não é preciso esperar meses para fazer uma viagem curta. Se o carro está em ordem na garagem, o check-in no aeroporto pode esperar.

Por Jean Tosetto *

Quando você é jovem de corpo e alma, além de recém-chegado ao mercado de trabalho, ouvir as pessoas reclamarem do estresse não faz muito sentido. Você está com toda a energia e disposição para abraçar o mundo e não presta muita atenção nas dores alheias. Mas uma frase aqui e outra acolá fica enterrada no seu inconsciente e subitamente elas afloram quando chega a sua vez de perguntar:

- O que estou fazendo aqui?

Então um de seus primeiros clientes volta a conversar com você num flashback mental:

- As pessoas ficam estressadas, trabalhando o ano inteiro, esperando pelo seu mês de férias para aliviar o fardo. Quando viajam por vários dias, elas saem do seu ambiente viciado para sentir um alívio momentâneo, mas a situação só piora quando a pessoa volta para o ofício. No meu entendimento, devemos combater o estresse em nosso ambiente de trabalho e na nossa rotina, mudando hábitos e melhorando a qualidade do espaço que ocupamos. Por isso quero que você me projete uma casa bem aconchegante.

Logicamente não foram as palavras exatas que o advogado usou no meu escritório, que ele revelou ter ouvido de uma psicóloga, mas uma das belezas de ser arquiteto é que podemos aprender o tempo todo com as pessoas, se deixarmos o radar ligado.

Por ser um profissional liberal, tenho dificuldade para tirar férias prolongadas. Ao longo do tempo, descobri a terapia de fazer pequenas viagens em fins de semana, de modo que estas se introduziram na minha rotina, funcionando como válvulas de escape da pressão crescente que muitas vezes nós mesmos nos impomos.

Fazer um bate e volta, com a opção de se hospedar no destino escolhido, nos permite colocar o carro na estrada, onde podemos desfrutar do prazer em dirigir – que as cidades brasileiras sem planejamento urbano vêm nos roubando.

Será que a culpa é só do carro?

Embora não more numa grande cidade como São Paulo, me coloco no lugar de seus milhões de habitantes, muitos deles perdendo horas do seu dia para se deslocarem de casa para o trabalho. Os engarrafamentos, os radares, as lombadas, o rodízio, os amarelinhos ou marronzinhos: tudo isso vai tirando do cidadão o prazer de guiar o próprio automóvel. Eis um crime não tipificado no Código Penal, mas que penaliza a vítima sem piedade.

É compreensível que o sujeito, após uma semana inteira de trabalho, não queira nem chegar perto de seu carro no domingo. Ele muitas vezes prefere esperar as férias chegarem, já pagando as parcelas do pacote turístico para Orlando na Flórida, por exemplo. Daí vem uma constatação irônica: muitos brasileiros que viajam de avião para outros países, não conhecem cidades de interesse turístico que, não raramente, ficam num raio inferior a 200 km.

Quantos bilhões de reais o Brasil desperdiça por ano, por não ter uma política de turismo nacional realmente eficaz?

Não estamos aqui para reclamar dos agentes públicos, mas para fazer a nossa parte, com as ferramentas que temos em mãos e o com princípio da iniciativa privada. Falemos de nossas pequenas e acolhedoras cidades. Valorizemos nossa gente. Circulemos nosso dinheiro entre nós mesmos. E finalmente coloquemos nossos carros na estrada. Se eles foram feitos para isso, nós também fomos.

Santo de casa também faz milagre

Por vezes, para conhecer um lugar diferente e não muito longe de casa, precisamos apenas de um motivo, uma boa desculpa para sair da frente da TV ou dos corredores de um Shopping Center no fim de semana. A Festa do Morango em Monte Alegre do Sul, por exemplo.

Esta pequena cidade, com menos de oito mil habitantes, fica no Circuito das Águas Paulista, entre Amparo e Serra Negra, nas margens do Rio Camanducaia, que serpenteia entre os montes da Serra Mantiqueira. Rica em fontes de água mineral, a malha urbana desordenada do município, repleta de casas do tempo colonial no ciclo do café, lembra a composição de um presépio, quando vista do alto de algum mirante.

O município de forte presença de descendentes de italianos fica distante apenas 130 km de São Paulo – ou seja, dá para ir e voltar no mesmo dia. Mas se tiver vaga em alguma pousada rural, vale a consideração pelo pernoite, especialmente se o clima estiver convidativo, com aquele ar puro e gelado que desce gostoso até os pulmões.

Há três caminhos pavimentados para chegar até Monte Alegre. Os usuários da Rodovia Fernão Dias podem seguir para Socorro e acessar uma estradinha vicinal tinhosa, que se liga ao caminho de Pinhalzinho para chegar ao destino pelo sul. Quem vem de Serra Negra, ao norte, desce apenas 6 km por uma pista simples, mas deliciosa de guiar. Nós optamos pela estrada que vem de Amparo, a oeste – é lá que fica o portal da cidade, construído num estilo que poderia ser classificado como misto de neocolonial com neorrenascentista.

Vista do portal de Monte Alegre do Sul para quem chega por Amparo.
Vista do portal de Monte Alegre do Sul para quem chega por Amparo.

Fronteira entre estados de espírito

A passagem pelo portal, reduzindo a marcha do carro, é simbólica. Até parece que deixamos numa alfândega imaginária aquele excesso de bagagem mental, formada por picuinhas não resolvidas, assuntos sem importância e implicações relacionadas ao trabalho. Para ingressar num recanto perdido entre montanhas, devemos levar apenas a parte alta do nosso astral.

Se por acaso o astral não estiver num bom nível, a placa indicando a direção do Mirante do Cristo vem como elixir. O percurso até o topo do monte é estreito e formado por bloquinhos de concreto intertravados. Nem todos bem travados. Os pneus vão tateando um por um e algumas peças se movimentam, fazendo um “cloc-cloc-cloc” agradável aos ouvidos.

Logo, um código informal se estabelece instintivamente entre desconhecidos: como só passa um carro de cada vez em certos trechos, quando há um encontro de veículos em direções opostas, quem está subindo joga duas rodas sobre a guia, encostando-se ao paredão. Quem está descendo não pode correr o risco de queda livre, dando passagem para quem sobe.

O Alfa Ronosso parece receber a benção luminosa do Redentor.
O Alfa Ronosso parece receber a benção luminosa do Redentor.

O cheiro do aconchego

Não é preciso dizer que a vista lá do alto é compensadora. Na quietude do lugar podemos ouvir a brisa encobrindo a pulsação do universo. Lá embaixo as casinhas coloridas disputam nossa atenção com o verde predominante da intensa arborização da paisagem. Se houvesse um restaurante com terraço panorâmico ali, poderíamos ter a sensação de esbarrar com Audrey Hepburn e Cary Grant, se estranhando ao som de Henry Mancini, no filme Charada. Está certo: o lugar não é nevado, mas igualmente charmoso.

Os jardins bem cuidados são uma tônica na cidade.
Os jardins bem cuidados são uma tônica na cidade.

Charmosa também é a velha Ponte da Mogiana, construída com estrutura metálica pela norte-americana Keystone Bridge Company de Pittsburgh em 1887, e restaurada um século depois pelo governo estadual. A Mogiana era uma empresa de transporte ferroviário, que escoava para Santos a produção de café em toda a região expandida de Campinas. Hoje o pontilhão não serve mais aos trens, mas aos automóveis – sempre um de cada vez.

A Ponte da Mogiana sobre o Rio Camanducaia.
A Ponte da Mogiana sobre o Rio Camanducaia.

Seguimos pelos trilhos desativados até a antiga estação ferroviária convertida em espaço cultural. Ao lado dela repousa uma locomotiva inglesa a vapor fabricada em 1910, sob um pergolado protegido com painéis de policarbonato. Teoricamente ela ainda funciona, dado que sua chaminé está ligada a um exaustor na cobertura translúcida. O ramal férreo da cidade foi desativado em 1966, para desalento daqueles que iam de trem para a capital.

Nas imediações da Maria Fumaça, funcionários municipais interrompiam o tráfego nas ruas de paralelepípedo que conduziam ao centro. Procuramos uma vaga para o Alfa Ronosso – como chamamos o nosso Twin Spark 156. A caminhada entre casarões com fachada na calçada não seria tão longa até a praça, em frente ao Santuário do Senhor Bom Jesus, repleta de barraquinhas de produtores rurais, com seus morangos do tamanho de limões e cachaças artesanais famosas no interior.

A passarela de pedestres sobre o Rio Camanducaia é cercada de verde.
A passarela de pedestres sobre o Rio Camanducaia é cercada de verde.

A locomotiva a vapor fez sua última viagem oficial em 1966.
A locomotiva a vapor fez sua última viagem oficial em 1966. 

Menos pressa – mais sabor

Com a fome apertando, procuramos um lugar para almoçar ali perto. Escolhemos um bife à parmegiana, numa varanda com vista para a Festa do Morango. A trilha sonora do momento foi executada ao vivo pela banda municipal, cujo repertório passeou pela Bossa Nova, Samba, MPB, Beatles e até uma peça erudita de Verdi. 

Mas o engasgo na garganta veio com o Tema da Vitória. Depois de tantos anos ele ainda mexe com os brasileiros. Não há estatísticas sobre isso, mas talvez a cada três famílias, duas tem um Ayrton Senna que foi embora cedo demais. A gente, porém, ainda tinha uma tarde inteira pela frente em Monte Alegre do Sul.

Nas escadarias do Santuário do Senhor Bom Jesus as pessoas descansam.
Nas escadarias do Santuário do Senhor Bom Jesus as pessoas descansam.

Hora da sobremesa. Um pote de morangos mergulhados no creme de leite e outro no chocolate. Arruma-se um lugar para sentar nas escadarias da igreja, que se convertem em arquibancadas para ver as pessoas passarem. As colheradas glicosadas abastecem o tanque de coragem para vencer a caminhada – quase uma escalada – até o Mirante do Cruzeiro.

Permeada com 14 imagens da Via Crúcis, a trilha para o alto do morro castiga as panturrilhas. A vontade de desistir só não é maior do que a curiosidade de ver o que tem lá em cima: uma capela e uma cruz, separadas por um campo que parece um heliporto – ou seria um lugar para esperar a chegada de uma espaçonave?

A trilha para o Mirante do Cruzeiro é adornada com imagens da Via Crúcis.
A trilha para o Mirante do Cruzeiro é adornada com imagens da Via Crúcis.

Entre a capela e a cruz há espaço para uma missa campal.
Entre a capela e a cruz há espaço para uma missa campal.

A religiosidade em cidades pequenas é mais latente do que nas grandes metrópoles. Talvez alguns não acreditem no além, mas acreditam no vizinho, cujos laços comunitários vão sendo fortalecidos sempre que alguém pendura um estandarte sacro na fachada da casa.

O “Fecha Corpo”

No Brasil as crenças se misturam e Monte Alegre guarda uma tradição iniciada em 1948, quando o Seu Zezé Valente adoeceu. Ninguém sabia ao certo o que era e, portanto, não havia cura para seu sofrimento. Como último recurso Seu Zezé procurou uma curandeira. Ela lhe ensinou uma receita de cachaça com ervas, que deveria ser preparada na quinta-feira da Semana Santa.
 
A bebida teria que ficar ao relento para ser consumida somente na alvorada da Sexta-Feira da Paixão. Seu Zezé se curou! Em agradecimento ele fez uma promessa: servir a cachaça milagrosa de graça, para quem lhe pedisse, nos anos seguintes. O dia do “Fecha Corpo” já completou sete décadas, com a tradição passada para os herdeiros do patriarca. 

Filas quilométricas se formam na porta da casa da Família Valente, que ainda serve uma fatia de pão com aliche para completar o desjejum. Como eles não dão mais conta de atender todo mundo, a Adega do Italiano entrou na história para ajudar. Tempos depois, vários alambiques do município engrandeceram o evento, a ponto de reunir gente fervorosa – além da conta – que vai fechar o corpo várias vezes, fazendo um périplo para garantir vida longa.

Fachada da casa da Família Valente, onde é servido o “Fecha Corpo”.
Fachada da casa da Família Valente, onde é servido o “Fecha Corpo”.

Quem nos contou isso foi um senhor que encontramos num boteco onde compramos água. Ele estava de camisa regata, bermuda e chinelos, mas portava um anel de advogado no dedo anelar direito. Pelo tamanho da pedra vermelha, devia ser tão bom de serviço como era de prosa.

Subindo a montanha

Anoitece mais cedo em cidades que dormem nas várzeas de rios que cortam as montanhas. As sombras que elas projetam nas ruas funcionam como ponteiros de relógios, a indicar a hora de pegar a estrada de novo. Antes conversamos com a Ludmila. Ela vive no Sítio do Júlio, distante mais de 20 km do centro, perto do Distrito de Mostardas. Levamos uma caixa de morangos para saber se realmente eles são os melhores do Brasil.

A Festa do Morango ocorre em julho, quando a Ludmila vende a safra do Júlio.
A Festa do Morango ocorre em julho, quando a Ludmila vende a safra do Júlio.

Seguimos para Serra Negra antes de voltar para casa. A subida da serra é curta, mas garante a diversão para aqueles que gostam de uma boa tocada. Eucaliptais fazem às vezes de guard-rails nas curvas em “C” que conversam com curvas em “S”. Tem curvas em “U” também, e algumas retas curtas para respirar. A paisagem é bucólica.

Essa estrada foi palco de três edições de uma corrida da modalidade “Subida de Montanha”. A última aconteceu em outubro de 2017. É o tipo de evento que atrai aficionados por máquinas de todos os tipos. Mas para levar a disputa a sério ali, a melhor pedida é um carro com tração traseira, livre de todo o peso extra de veículos convencionais.

Na subida para Serra Negra, as curvas são cercadas por eucaliptos.
Na subida para Serra Negra, as curvas são cercadas por eucaliptos.

E aquele peso extra que deixamos na alfândega imaginária do portal ficou para trás. No lugar dele, levamos de volta o perfume dos morangos e o desejo de voltar mais vezes. Em Monte Alegre do Sul não tem aeroporto e não tem mais estação ferroviária. Então a gente vai de carro mesmo – essa invenção sobre rodas que nos dá a liberdade de vasculhar o que há de bom perto de nós.


* Jean Tosetto é arquiteto desde 1999 e editor do site mplafer.net desde 2001. É também autor dos livros “MP Lafer: a recriação de um ícone” (2012), "Arquiteto 1.0 - Um manual para o profissional recém-formado (2015), "Guia Suno Dividendos" (2017) e "Guia Suno de Contabilidade para Investidores" (2018). Saiba mais em www.vivalendo.com

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