O melhor de Lindóia


Entre prestigiar rituais e ansiar por caminhos novos, ficamos com os dois. No mesmo dia estivemos num dos eventos mais visitados por turistas no Estado de São Paulo e, a poucos quilômetros dali, num rincão esquecido, com cenas igualmente marcantes.

Por Jean Tosetto *

Coloquei o despertador para tocar às seis horas da manhã, mas não foi preciso: quatro minutos antes já estava em estado de alerta, ouvindo a chuva cair no quintal. Consultei a previsão do tempo para a região: nublado de manhã e pancadas de chuva de tarde. Se não fosse pela vontade de guiar na estrada, teria voltado para o travesseiro. Porém, meus amigos Dani e Luciano já estavam de pé. Nossa palavra também. Seguimos juntos para o IV Encontro Brasileiro de Autos Antigos, em Águas de Lindóia, no feriado de Tiradentes.

Chegamos antes dos estacionamentos abrirem, por isso deixamos o carro no pátio da igreja matriz da cidade - uma forma de colaborar com a comunidade local. Caminhamos pela enorme praça, onde carros - cada vez menos antigos e cada vez mais velhos - se esparramavam em torno do lago artificial. É preciso afirmar: os colecionadores de porte não estão mais levando seus melhores veículos para a cidade, embora o evento em Águas de Lindóia ainda seja o recordista de público no Brasil, apesar dos (poucos) banheiros imundos e da comida sempre cara.

O que nos leva ano sim, outro também, para a cidade, é a expectativa de reviver o impacto das primeiras edições do encontro, quando era organizado por outra entidade. A teimosia é alimentada ritualisticamente: o café na varanda do hotel central, o alô para os comerciantes de livros, o abraço em alguns colegas que só vemos por ali. Antes isso consumia um dia inteiro. Agora, a vontade de ir embora bateu logo depois do almoço. O vídeo acima resume bem o que foi a nossa manhã.

Se você está com mais tempo para voltar para casa, significa que não é preciso fazer o caminho mais curto. Dá tempo de parar em Serra Negra para outro café, onde escolhemos seguir pela vicinal até a rodovia que liga Amparo e Itapira. É o lugar ideal para testar a eficiência da caixa de marchas do Alfa Romeo 156, velho de guerra que aceita, sem frescuras, uma tocada esportivamente suave pelos cafezais da Serra da Mantiqueira.

É neste modo de guiar que o nosso olhar de arquiteto fica mais aguçado e consegue vislumbrar as ruínas do que parece ser uma estação de trem abandonada.

- Posso parar para fazer uma foto?

Era a pergunta que só aceitava uma resposta. Descemos da máquina, que chamo de "embaixada italiana", para ver de perto a construção de tijolos à vista, com grandes mãos francesas na cobertura e uma plataforma que confirma: era realmente uma estação de trem, provavelmente construída no fim do século XIX, para escorar a produção do café de Serra Negra, em fazendas tocadas pela mão-de-obra de imigrantes também italianos. O Alfa Romeo estava em casa.

O Alfa Romeo 156 diante da estação de trem abandonada.
O Alfa Romeo 156 diante da estação de trem abandonada.

Só não me peça para explicar qual era o trajeto da linha férrea, pois a topografia do local não indicava tal possibilidade. A poucos metros dali, começava outra estradinha vicinal asfaltada, tão estreita que não permitia a passagem simultânea de um caminhão com um carro - só se alguém fosse para o mato.

- Vamos ver até onde este caminho nos leva?

Se você gosta de falar "não", então pegue carona com outro sujeito. E toca desviar dos buracos, ansioso para saber o que tem do outro lado da montanha, só para descobrir que tem mais uma montanha. As surpresas vão se descortinando pelas curvas, como uma velha sede de fazenda próxima a um riacho. O casarão repousa sobre um terreno em aclive, com a porta social abastecida por duas escadas sobre arcos diante de um porão.

A sede da fazenda esperando a volta do Led Zeppelin, para servir de encarte para um novo álbum.
A sede da fazenda esperando a volta do Led Zeppelin, para servir de encarte para um novo álbum.

O Dani diz que aquele porão era uma espécie de senzala. Tenho minhas dúvidas, pois a fachada era rebuscada demais para ser do tempo colonial. Tinha dedo de artesãos italianos naqueles entablamentos, e estes, embora trabalhassem de sol a sol, não eram propriamente escravos. Para mim, aquele porão era um grande armazém - talvez uma adega. Só o questionamento diante de uma edificação, que raramente vemos nas cidades, já estava valendo a escapada da rota convencional.

Seguimos adiante. A largura do leito carroçável aumentou um pouco, indicando que estávamos na direção de algum povoado. Ao passar por um bambuzal, outra parada, para ver de perto as ruínas de mais um casarão, habitado agora por árvores que romperam o telhado. Alguns batentes de portas e janelas ainda estavam lá, a espera de alguém que trabalha com madeiras de demolição, que rendem móveis rústicos que custam os olhos da cara.

O novo e o velho: a dicotomia sempre esconde as nuances.
O novo e o velho: a dicotomia sempre esconde as nuances.

A quietude do entorno, envernizada pelo som do vento alisando as folhas no alto das árvores, nos permite ouvir os pensamentos: como pode, algo belo e imponente, entrar em decadência até se arruinar completamente?

É bom constatar que a previsão do tempo falhou: as pancadas de chuva não vieram, mas estava na hora de voltar para Paulínia, e fotografando cada cenário revelado não faríamos isso antes do anoitecer. Nossa última parada foi diante da Capela da Sagrada Família, que está sendo reformada por voluntários que trabalham nos feriados e fins de semana. Eles alegaram trabalhar na construtora "Odebrecha".

A paineira não consegue oferecer sombra para a Kombi. Não importa: tudo debaixo do sol é passageiro.
A paineira não consegue oferecer sombra para a Kombi. Não importa: tudo debaixo do sol é passageiro.

O bom humor deles era o testemunho do entusiamo reinante na cena. Algo que contagia e nos faz querer arregaçar as mangas para ajudar. Faria isso certamente, se não estivesse longe de casa, com boas dezenas de quilômetros para percorrer. Perguntei para o líder deles qual era o nome daquele bairro rural.

- Bairro dos Leais.

Eles não foram ao encontro de carros antigos de Águas de Lindóia.
Eles não foram ao encontro de carros antigos de Águas de Lindóia.

Nem tudo é decadência, portanto. Algo importante está em reconstrução. O Bairro dos Leais, em Serra Negra, é um retrato do Brasil.

* Jean Tosetto é arquiteto desde 1999 e editor do site mplafer.net desde 2001. É também autor do livro “MP Lafer: a recriação de um ícone” - lançado em 2012.

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6 comentários:

  1. Jean, parabéns pela cobertura do evento em Aguas de Lindoia, estive lá no sábado, sai de SP cedo de moto, a cidade estava lotada, MUITA GENTE, achei que tinham muitos carros repetidos, por exemplo, galaxi, muitos. A cidade já não esta comportando o volume de visitantes. Mas ainda vale ir ver o evento, mesmo pegando chuva na volta, chegando em casa todo molhado . Abraço Gilberto

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    1. Gilberto, percorrer de moto o Circuito das Águas de São Paulo já vale o dia. A chuva é para lavar a alma e o encontro de Lindóia é a desculpa para sair de casa. Abraço!

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  2. Jean, a estação abandonada às margens da SP-105, conhecida como a rota do queijo e do vinho, é a antiga Santo Aleixo, do Ramal de Serra Negra da Mogiana. Mais informações aqui: http://www.estacoesferroviarias.com.br/s/stoaleixo.htm
    Abraço!

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    1. Caro Decio BJ, muito obrigado pelo comentário. Já disponibilizei o link ao final do artigo. Fico feliz por ter deduzido corretamente o período de construção da "Santo Aleixo". Abraço!

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  3. Jean,
    belo carro, e gostei de sua matéria. Obrigado por nos ceder o vídeo para colocar no AUTOentusiastas.

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    1. Caro Juvenal Jorge, agradeço a leitura do texto. É um prazer e uma honra colaborar com o Ae através do vídeo.

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