A professora Maria Mercedes e o aluno Jean Tosetto. |
O pintor bateu na porta do escritório e me pediu para comprar uma lata de solvente e um galão de verniz, para terminar seu trabalho de quase três semanas em toda a parte externa da casa. Fui até a loja de tintas e o balconista me cumprimentou pelo nome pela primeira vez. Era a quarta ou quinta vez que voltara lá em poucos dias.
Ao pagar a conta no caixa reparei numa senhora que conversava com alguém mais jovem - provavelmente sua filha. Conhecia ela de algum lugar e outro funcionário da loja resolveu o enigma, ao dizer algo como: "Aqui está, Dona Mercedes".
- Você é professora? Fui seu aluno na primeira série!
Ao responder que sim, Mercedes se virou para a filha, confirmando que também se lembrava de mim, pois a jovem havia advertido que ela parasse com a mania de achar que todo mundo, na cidade, havia sido seu aluno.
- Seu aprendiz escreveu um livro. Faço questão de ofertar um exemplar para você.
A professora me perguntou sobre o que havia escrito. Respondi que era sobre a história de um carro antigo. Dei um cartão de visitas e a convidei para conhecer meu escritório, que fica junto de minha residência.
Naquela noite, antes de dormir, as memórias foram aflorando na mente. Voltei ao já distante ano de 1983, quando fui para a Escola Estadual Dr. Francisco de Araújo Mascarenhas, em Paulínia. Lembrei de meu estojo de madeira com tampa deslizante. Dentro dele havia um apontador redondo, alguns lápis de cor, uma borracha da marca Mercur, com a face estilizada de um homem, além da lapiseira Compactor vermelha, ponta grossa (daria minha Pentel 0.9 laranja para ter ela de volta).
Na pasta em formato de maleta eu carregava a cartilha, na qual cada capítulo equivalia a uma letra consoante, sempre combinada com as vogais. Havia também um caderno de brochura e o caderno de caligrafia. Além de aprender a ler e escrever, deveríamos também escrever com letra bonita - não importando se fosse em letra de forma ou letra de mão.
Lembrei também dos coleguinhas: Márcio, Leandro, Paulo, Marcelo... todos nós gostávamos da Simone, a menina mais linda da classe. Fazíamos fila para entrar na sala de aula e fila para receber a merenda no recreio. A fila começava com as garotas e dos mais baixos para os mais altos. Eu ficava quase no fim dela.
A professora Maria Mercedes era disciplinadora. Tinha uma régua de madeira que costumava batucar na carteira dos alunos que não prestavam atenção. Para passar de lição, na cartilha, todos tinham que ir na mesa dela fazer a leitura em voz alta. Era sempre uma ansiedade crescente até ela me chamar.
Confesso que tinha facilidade para aprender e isso teve o lado ruim, pois detestava fazer lição de casa. Certa vez a professora Mercedes escreveu um bilhete no meu caderno. Minha mãe teria que ler e assinar. Para evitar a bronca homérica eu mesmo assinei. Seria o crime perfeito se não fosse por um detalhe: assinei com a lapiseira e não com a caneta. Meus pais foram chamados na escola e a bronca homérica virou uma epopeia digna de Ulisses: só terminou perto do Natal.
O fato é que aprendi a ler e escrever. Tenho a professora Maria Mercedes num canto nobre de meu coração. No dia seguinte ela veio ao meu escritório. Ao folhear o livro "MP Lafer: a recriação de um ícone", ouviu de mim que não seria preciso gostar de carros antigos para apreciar a leitura. Ela me surpreendeu dizendo que teve um Fusca 1966 por mais de trinta anos e que só vendeu o carro pois estava ficando difícil encontrar peças de reposição.
Pedi para tirar uma foto e eternizar o momento. A mulher que me ensinou a ler e escrever ganhou um livro de minha autoria. Logicamente não sou um Ernest Hemingway, um Voltaire ou um Machado de Assis, mas acho que eles não tiveram o prazer de presentear a primeira professora.
Por Jean Tosetto
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