Os carros no tempo do vinil

Por Jean Tosetto *

Miniatura de MP Lafer sobre disco de vinil dos Beatles.

O termo “antigomobilismo” não me agrada muito, embora aprecie carros com mais de trinta anos de história. O fato é que na História, quando o “H” é maiúsculo, três décadas não significam muito. Então, antes de me considerar um “antigomobilista”, prefiro dizer que sou um entusiasta de automóveis, simplesmente. Deste modo tento escapar daqueles rótulos que definem as pessoas como anacrônicas, conservadoras e reacionárias – e apreciar o que é bom não tem nada a ver com isso.

O mesmo se aplica para a música. Não me dou bem com os estilos atuais e eletrônicos demais. Ainda gosto de ouvir meus discos de vinil, tão em desuso quanto os carros com carburadores, definitivamente os meus favoritos. Cresci ouvindo rock numa época em que ouvir música era um ritual: deslizar os dedos pelas capas generosas em tamanho e comunicação visual, tirar a bolacha do plástico com um cheiro peculiar, e finalmente colocar a agulha para sulcar as doces ondulações negras, produzindo um chiado tão gostoso quanto ouvir um Dodge dando ignição.

Não dá para ver televisão fazendo isso, e muito menos ficar na frente de um computador, esperando que alguém curta uma foto que você acaba de postar. Um disco de vinil é como uma mulher ciumenta, que exige atenção só para ela. Os melhores carros são assim também: eles querem a sua dedicação o tempo todo, oferecendo prazer em troca. E nem precisa ser um grande esportivo ou um garboso sedan para tanto, mas é necessário ter ao menos um carburador, um câmbio manual e tração traseira.

Experimente reduzir uma marcha pouco antes de entrar numa curva em declive, acionando o freio motor. Sua mão esquerda segura o volante na posição das dez horas, a mão direita leva a alavanca da marcha de quarta para terceira, o pé esquerdo aciona a embreagem, enquanto isso o pé direito dosa o acelerador para evitar o uso do freio convencional. Para coordenar os quatro membros, uma cabeça pensante.

Agora tente imaginar tal cena num carro atual, com câmbio automático, direção assistida, freio ABS. Perdeu a graça, não é mesmo? A perna esquerda virou uma reles passageira, o pé direito pode ser atolado sem dó no pedal do freio ou do acelerador, pois a eletrônica embarcada corrige os excessos. A mão direita fica liberada para brincar com o aparelho de GPS, telefone celular e para selecionar uma das centenas de músicas baixadas pela Internet.

Nada contra a evolução: no dia a dia escuto músicas saltando de faixa em faixa, enquanto faço atividades burocráticas no computador. Para enfrentar os congestionamentos, cada vez mais constantes, prefiro usar o meio de transporte mais novo da garagem. Mas isso só reforça o prazer que sinto quando consigo sentar para ouvir uma boa música, ou pegar uma estrada sem hora para voltar e sem destino para seguir.

Carburadores e discos de vinil são produtos do século XX. Como nasci no mesmo, acho que tenho o direito de apreciar suas coisas boas, sem ser chamado de “antigomobilista” ou “conservador”. Não tem nada mais anacrônico do que cunhar termos para uma paixão.

Leia mais artigos da coluna "Editor Volante".
* Jean Tosetto é arquiteto desde 1999 e editor do site mplafer.net desde 2001. É também autor do livro “MP Lafer: a recriação de um ícone” - lançado em 2012. 

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 Este artigo foi publicado originalmente na Revista MotorMachine número 01, em março de 2013.

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