Um Natal a bordo do MP Lafer

- Um  conto natalino de Jean Tosetto

Durante muitos anos o MP Lafer foi o meu único carro, para uso diário. Porém, a cidade de Paulínia cresceu, o trânsito ficou complicado - repleto de barbeiros - e além do mais me casei e tive uma filha. Como vender o carro não passa pela minha cabeça, resolvi deixar o conversível descansando num pequeno rancho que construí nos fundos da casa de meus pais, na chácara onde passei boa parte da minha infância e juventude.

É para lá que vou assim que a saudade aperta. Saudade dos meus pais, da irmã, dos sobrinhos e do MP. Pelo menos duas vezes por mês ligo o carro para dar uma volta nas estradinhas vicinais da região, onde recarrego a bateria do carro e a minha caixola, fervilhante de ideias que não terei tempo de colocar em prática numa só vida.

Na correria do fim de ano, o MP ficou parado mais tempo do que devia. Fui até a casa de meus pais para colocar os assuntos em ordem, tirar a capa do automóvel para planejar os próximos passos da carreira, dos assuntos familiares, e primordialmente para retomar minhas conversas com o Papai do Céu. Chave na ignição:

- Tec! Vou, vou, vou, vou, vou, vou, vou.

O carro não pegou.

- Tec! Vou.. vou... vou... não vou.

A bateria arriou de vez. Compreensível. Eu mesmo estava exaurido neste fim de ano de muito trabalho, apesar do Carnaval, da Copa do Mundo, das eleições e do Petrolão. Se os rendimentos não foram proporcionais ao meu empenho, resta esperar por um ano melhor na sequência. E para começar o ano melhor precisamos de uma recarga nas baterias: do carro e da gente.

Chamei a minha irmã. Ela levou sua caminhonete perto do rancho e fizemos a famosa chupeta.

- Tec! Vou, vou, vou, vrum!

Engatei a primeira marcha e fui direto na oficina "Só Tranco" do mecânico eletricista Gilson. Fiz um projeto residencial para ele há alguns anos e desde então só ele mexe na parte elétrica do MP Lafer.

A bateria foi examinada. Achei que precisaria trocar, mas ela ainda tinha meia carga. O diagnóstico recaiu sobre o motor de arranque, que estava desperdiçando muita energia antes de acionar o virabrequim. Outra hipótese poderia ser o cabo que liga a bateria, no bico do veículo, à bobina de ignição, pendurada atrás do eixo traseiro, para delírio dos puristas.

Deixei o MP na oficina e voltei para a casa de meus pais a pé. Meu afilhado estava comigo. Passamos pelo bar (de portas abertas) que fica ao lado da igreja (de portas fechadas), na praça do bairro João Aranha. Havia um homem deitado na calçada. É difícil explicar para um garoto, de apenas quatro anos, que as pessoas se perdem por causa de uma garrafa de pinga mais barata do que um maço de cigarros. A vida, que não tem preço, as vezes se consome por causa dessas ninharias.

Fui buscar o MP na manhã da véspera de Natal, mas ainda faltava concluir parte do serviço. A oficina estava cheia de carros esperando uma revisão para a viagem de fim de ano. Cuca fresca. Disse para o Gilson não dar prioridade no meu caso e que, se ficasse tudo em ordem, poderia levar o carro diretamente na casa de meus pais. E o dono da "Só Tranco", que pretendia encerrar o expediente ao meio dia, entregou o MP no meio da tarde. Super Gilson.

A noite chegou. A família é grande e cheia de agregados: todo mundo vai na chácara de meus pais. Tem uma leva de crianças no clã que ainda acredita em Papai Noel. Não deu outra: minha irmã me escalou para vestir a fantasia do bom velhinho. Fui para o quarto de hóspedes e vi aquele amontoado de tecido sintético avermelhado. Esse treco esquenta pra caramba. Tirei a camisa polo para vestir só o agasalho. Fiquei contente: o sinto estava folgado e tive que usar um grampo de cabelo para ajudar no afivelamento.

Para não ser visto antes da hora e estragar a surpresa, pulei a janela do quarto. Então, ao ver o MP estacionando no rancho, tive a grande ideia: chegaria na festa dirigindo o carro. Chave no contato:

- Tec! Vrum!

Espere aí: tec, vrum? O carrou pegou de primeira, rugindo alto no primeiro gole de gasosa. Baixei a capota, passei ao lado da casa, fui até o portão da chácara e voltei para a varanda. Foi neste momento que a criançada me avistou. A coisa mais linda do mundo é ver o sorriso de uma criança, com seus olhinhos brilhando.

O bom velhinho guiando um bom velhinho (foto: Renata Tosetto).
O bom velhinho guiando um bom velhinho.

Entrei na sala de estar suando feito um sueco na sauna. Ajeitei minha voz. As primeiras palavras saíram com o sotaque do Lula. Mudei a estação de rádio na garganta e me inspirei no Lima Duarte, quando ele ainda dublava desenhos animados. Melhorou. Fomos esvaziando a árvore de Natal, carregada de presentes. Até os adultos ganharam. Eles tiveram que sentar o meu colo para tirar uma foto. Eita povinho pesado.

E sem essa de remorsos, de que o Natal é a festa do consumo e coisa e tal. Todo mundo ali era gente trabalhadora que se gostava bastante. A maioria das pessoas não sabe falar o quanto gosta umas das outras. Portanto, no Natal elas encontram a tradução desse sentimento na forma de um embrulho com laços e cartõezinhos. De fulano para ciclana: nem precisa escrever que é com amor.

Finda a distribuição de presentes, o combinado é que eu trocaria de roupa para me juntar ao pessoal na ceia natalina. Manobrei o MP e vi o portão querendo encobrir um chamado: "vem pra rua, vem!"

O convite era irrecusável. Fiz uma escapada que não estava nos planos. Dirigi pelas ruas do bairro, que antigamente era de feições rurais e ganhara aquele jeitão sem sal de periferia, com casas pequenas que obrigam as pessoas a colocarem as cadeiras nas calçadas. A graça justamente fica por conta disso, com os vizinhos se confraternizando e celebrando a vida juntos.

A molecada nem foi dormir na meia-noite. Todo mundo queria testar suas bicicletas novas, os velocípedes, as bonecas. Então, subitamente, passa o Papai Noel, a bordo de um calhambeque vermelho. Era a prova de que o bom velhinho existia. Entre a surpresa e o espanto, vi crianças pulando de alegria, apontando o dedo na minha direção, chamando os outros para ver o Papai Noel passar. Os papais e as mamães também acenavam para mim, inclusive os bêbados.

Retribuí cada felicitação com votos de Feliz Natal, acenando de volta.

Ah! Vamos dar uma esticada nessa volta, que a emoção está pedindo. Peguei a avenida para o centro da cidade, com poucos carros transitando, mas quase todos com a buzina acionada. Num retão dei uma enchida no motor e o vento veio seco na cara. Meu peito gelou na hora, pois a roupa do Papai Noel nos faz suar dentro de casa, mas passar o maior frio guiando um conversível.

Pé embaixo no acelerador e de repente a barba postiça levanta de supetão, encobrindo meus olhos. Pé no freio, pé na embreagem, uma mão na redução de marcha e a outra para ajeitar a barba. O susto foi grande o suficiente para lembrar que era noite de Natal - o que pedia velocidade cruzeiro para curtir o momento.

As ruas do comércio estavam desertas. O bairro dos riquinhos também. Provavelmente foram passar o Natal na praia, na Serra Gaúcha, ou na Disney. Neste setor da cidade me senti como um fantasma. Todo Natal tem os seus. Vamos voltar para os bairros populares, que lá está bem mais divertido.

- Papai Noel! Pare aqui um pouquinho!

Eu não podia parar. Não tinha sequer uma bala de goma para dar de presente. Ao ouvir o pedido que não teria como atender, me deu aquela sensação de ser alguém extremamente egoísta. Como a mãe daquela criança explicaria que o Papai Noel não estacionaria o calhambeque naquela calçada?

Na próxima vez - e espero que tenha uma - sairei com munições; balas, chocolates, gibis, bolas de plástico, bonecas de pano. Talvez um travesseiro para dar volume na barriga que ainda não tenho.

Há alguns anos não sentia o espírito natalino batendo tão forte no coração. Sei que é tudo mera ilusão e agora invejo as crianças que se alimentam disso, que são ingênuas, que são puras, que são jovens demais para saber que este mundo não é exatamente um lugar justo.

É contra a injustiça desse mundo que nasceu o menino Jesus. Não se pode contar uma história de Natal sem mencionar aquele que veio para nos trazer a esperança - este sentimento pouco racional e tão bonito.

Voltei para a casa de meus pais. Guardei o MP Lafer na garagem dos fundos, no rancho fundo. Passei a mão no seu capô. Valeu amigo: te devo mais essa.

Ao tirar a fantasia do bom velhinho tentei congelar aquele momento de intensa felicidade. Sempre depois de um banho de felicidade vem a toalha do medo: você não quer ficar seco das gotas de felicidade e teme perder aquilo que sequer intencionou vivenciar.

É por isso que escrevo.

E espero que ainda dê tempo de desejar mais uma vez:

- Feliz Natal! Feliz Ano Novo!

2 comentários:

  1. Gostei do conto e da aventura. Deve realmente ter sido muito boa! Aproveito para mais uma vez desejar-lhe um feliz ano novo, cheio de histórias boas para contar.

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  2. Obrigado, Vera! Que em 2015 todos nós possamos viver novas histórias, sem esquecer das antigas. Abração!

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